Eduardo Sales de Lima
Brasil de Fato
Faz parte do jogo. Um chute na canela é natural. Mas, atualmente, poderia uma mulher receber um “golpe” desse vindo de um homem? A resposta pode estar nos campos de várzea ou nas ruas e quadras pelo Brasil afora. O fato é que, em um meio historicamente masculinizado, as mulheres há tempos tentam produzir novos significados atribuídos ao próprio futebol e à sociedade que o cerca. Não à toa, no ano de 1964, o CND (Conselho Nacional de Desportos) chegou a proibir a prática do futebol feminino no Brasil. Somente em 1981 essa decisão foi revogada.
Ainda hoje, por mais que a presença das mulheres neste universo masculino tenha crescido bastante, elas ainda são vistas como exceções, sobretudo pela mídia comercial. “Não se faz uma análise da sociedade capitalista, machista e patriarcal para falar do futebol feminino hoje. As análises são sempre mais rasas. Elas são vistas como heroínas. Pegam a Marta e a transformam num caso de exceção porque ela conseguiu vencer. E aí fazem matéria com ela no 8 de março [Dia Internacional das Mulheres]”, acredita Michelle Prazeres, jornalista e ex-boleira das categorias de base do Botafogo (RJ).
“Pegam” também a ex-bandeirinha Ana Paula de Oliveira e transformam em outro caso de exceção. Só que, nesse caso, culminou em sua “expulsão” dos gramados. “O que acabou com a carreira da Ana Paula não foi só o fato de ela ter posado nua para a revista, foi o fato de ela ser bonita. A partir do momento em que passou a ser valorizado nela não o seu trabalho, mas seus atributos físicos, acabou a carreira dela”, lembra Marília Ruiz, jornalista esportiva de Lance!.
Portanto, tal construção de novos significados dentro do futebol e da sociedade é um processo lento. A associação da mulher ao espaço privado da casa é algo que pegou até mesmo a recém-eleita presidenta do Flamengo. Em seus comícios, Patrícia Amorim fez inúmeras analogias em relação à facilidade de a mulher administrar bem o lar, e conseguinte, um clube de futebol.
“Por mais que, com isso, ela dialogue com a sociedade, ela podia justamente ter contribuído, nesse momento, para desnaturalizar esse tipo de ideia. Não só naturalizou como reproduziu o discurso machista em voga”, avalia Michelle Prazeres.
Sobre a presença de Patrícia Amorim no comando do Flamengo, Baby Siqueira Abrão, primeira locutora de futebol do rádio brasileiro, acredita que “seria uma coisa legal se ela não tivesse sido apoiada pelo Ricardo Teixeira, da CBF”. Baby iniciou sua carreia de locutora em 1971, aos 18 anos, na Rádio Mulher, logo após a seleção brasileira ter sido tricampeã mundial de futebol.
Mistura
O antropólogo José Paulo Florenzano, autor de “A Democracia Corintiana: práticas de liberdade no futebol brasileiro”, não se anima tanto com a presença da mulher na classe dirigente, no trio de arbitragem ou na equipe esportiva. Apesar de, segundo ele, tal presença ser necessária, “não se revela suficiente para abalar a ordem sócio-sexual estabelecida no futebol”.
O que pode significar radicalismo para muitos, Florenzano acredita que somente a mescla entre jogadores e jogadoras poderá causar um impacto mais efetivo dentro da sociedade. “A mudança, aqui, passa pela composição dos times, isto é, pela mescla de homens e mulheres e não pelo desenvolvimento paralelo de duas modalidades, destinado à manutenção das fronteiras impostas pelo futebol força, que privilegia a dimensão físico-econômica em detrimento da dimensão política do jogo”, defende.
Segundo o antropólogo, a conjunção da bola e da mulher em uma modalidade separada não ameaça, mas reforça “o enlace da bola e do homem tecido com base na norma do jogador-macho”. Para ele, portanto, somente a superação das fronteiras pode levar à reordenação simbólica do universo machista do futebol. “E essa superação, por sua vez, vem ocorrendo de forma cotidiana, coletiva, anônima, nos jogos de rua da periferia, nos campos de várzea do subúrbio, ou, ainda, nos campos de terra onde meninos e meninas atuam conjuntamente, interagindo no quadro da emancipação do preconceito e da discriminação”, conclui.
Classe no futebol
Mas, pelo menos no que se relaciona à ocupação de espaços, a primeira narradora de futebol do Brasil, que também é filósofa, entende que a entrada das mulheres no mundo masculino é uma conquista. Diferentemente da abordagem de Florenzano, Baby tece uma advertência à sociedade, sobretudo às mulheres, é claro. O problema da participação feminina no universo do futebol profissional, engolido pelo sistema capitalista, ocorre, segundo ela, quando a mulher se torna mais uma parte da “engrenagem”.
Para ilustrar seu pensamento, Baby cita o sociólogo e ensaísta alemão Robert Kurz. Segundo ela, Kurz elucida que todos os espaços de trabalho abertos, desde a Revolução Industrial, na verdade, são espaços de exploração de mão-de-obra, e que a mulher não se dava conta de, que em vez de trazer o jeito feminino e tentar fazer alguma mudança, ela se tornava mais uma peça na engrenagem capitalista.
“E se tornou parte de uma engrenagem com todos os méritos. Até doenças que elas não tinham, agora têm. Ela tem estresse, fumam bastante, cheiram cocaína”, salienta Baby. A primeira narradora de futebol no Brasil defende que esses ganhos femininos, como o crescimento da participação no universo do futebol, “precisam depurar o capitalismo e não se tornar sua engrenagem”.
Para antropóloga, amadurecimento do futebol feminino pode refletir na sociedade os novos rumos das relações de gênero.
O Flamengo tem uma presidenta. Eveliny Almeida foi a primeira a comandar um trio de arbitragem no campeonato cearense da primeira divisão. Apresentadoras de mesas-redondas, como Renata Fan, da TV Bandeirantes, se consolidam no meio.
Enquanto isso, medalha de prata em Atenas (2004) e Pequim (2008) e vice-campeã mundial na Copa do Mundo da China, em 2007, o futebol feminino brasileiro ainda carece de público e investimento. Em plena tarde de domingo, 12 de dezembro, havia pouco mais de 5 mil pessoas no estádio do Pacaembu para assistir ao jogo entre as seleções do Brasil e do México.
As justificativas para esse fenômeno são diversas. Tem gente que diz que a categoria não possui a estrutura empresarial do futebol masculino. Outros põem em xeque a beleza e a dinâmica do jogo. Mas pouco, ou quase nada, é dito sobre o fato de que a evolução do futebol feminino pode funcionar como mais um "tijolo na construção de um novo conjunto de valores que prova que não existem argumentos que justifiquem a não participação da mulher nesta ou aquela atividade", como afirma Lara Stahlberg, antropóloga, em entrevista ao Brasil ao Fato.
Brasil de Fato – Não é contraditório o fato de o universo do futebol masculino ter cada vez mais essa participação feminina (bandeirinhas, torcedoras, apresentadoras) e, ao mesmo tempo, o futebol feminino ser tão pouco valorizado no país? Por que isso ocorre?
Lara Stahlberg – A questão da valorização do futebol feminino é histórica e cultural. Em vários países, como nos Estados Unidos, o futebol se constituiu como um esporte predominantemente feminino, praticado em escolas, universidades etc, quase que exclusivamente por mulheres, sendo um esporte profissional que vem crescendo na modalidade masculina de uns anos pra cá. No Brasil, o que aconteceu foi exatamente o inverso. Foi durante muito tempo considerado um esporte masculinizante e pouco adequado às mulheres, seja pela exigência física, a maneira como conforma os corpos ou mesmo pela suposta violência manifesta no jogo.
O incentivo ao futebol feminino no Brasil condiciona seu sucesso à sensualidade da jogadora para atrair o público masculino?
Não creio. O argumento mais utilizado pelos homens para não acompanhar o futebol feminino é que ele é "chato" ou "sem graça" em comparação com o masculino. Acho que demonstrar habilidade técnica, beleza e força no futebol feminino é muito mais eficiente do que atrair pela beleza física das jogadoras, mesmo porque apelar para a sensualidade seria reafirmar um pré-conceito em relação às jogadoras ("não jogam como os homens", "não é um esporte para mulher") do qual as mulheres em geral (torcedoras, jogadoras, profissionais) tentam se afastar.
Dado que esse espaço não é apenas esportivo, mas também sociocultural, quais são os valores nele embutidos e dele derivados que ainda estabelecem limites à visibilidade da mulher como jogadora de futebol, sujeito do jogo?
O maior empecilho a uma plena participação das mulheres no futebol – nas arquibancadas ou em campo, profissional ou amador – é o fato de que elas não são socializadas no futebol desde crianças, como ocorre com os homens. A consequência disso é que o número de mulheres que praticam o esporte é comparativamente muito menor, e o argumento dos homens é que por isso elas não são capazes de compreendê-lo, por não terem um olhar, digamos, "de dentro". Além disso, como já foi dito antes, existe toda uma questão física que julga uma não adequação do corpo da mulher para a prática do futebol. De um lado, o corpo frágil da mulher não suportaria um forte contato e os choques intrínsecos ao futebol, de outro, uma suposta "masculinização" indesejada do corpo é uma consequência que também é usada como argumento para justificar porque uma mulher não pode, ou pelo menos não deveria, jogar futebol.
O amadurecimento do futebol feminino no Brasil só ocorrerá, de fato, com a subversão do atual conjunto de valores intrínsecos ao esporte e à sociedade?
São processos que devem acontecer concomitantemente. O futebol feminino amadurecerá com incentivo – financeiro, inclusive –, com a desmistificação de alguns preconceitos e reforçando a ideia de que não precisa ser uma arena exclusivamente masculina. Isso só pode ocorrer com alterações em valores que vão muito além do futebol. São questões que passam pelo lugar que se acredita que a mulher pode ou deve ocupar na própria sociedade. Por outro lado, a consolidação desse amadurecimento pode ser mais um tijolo na construção de um novo conjunto de valores que prova que não existem argumentos que justifiquem a não participação da mulher nesta ou aquela atividade por este ou aquele motivo. É por isso que o crescimento do futebol feminino precisa de uma alteração de valores, assim como a mudança de alguns valores pode ser "ajudada" pelo crescimento do futebol feminino.
Quem é
Lara Stahlberg , mestranda em antropologia na Universidade Federal de São Carlos, é uma das autoras do livro "Visão de Jogo: antropologia das práticas esportivas" (São Paulo, editora Terceiro Nome, 2009), organizado por Luiz Henrique de Toledo e Carlos Eduardo Costa.
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